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ÁGUA DOCE
Paulo Fernando Monteiro Ferraz

        O confeiteiro Gilberto golpeava com a mão em cutelo a massa e, em seguida fabricava, com dedos de artista, doces e salgados. Dispunha-os na tábua de estiva, que levava ao forno. Depois, guarnecia a vitrine com o que havia preparado. Trabalhava com rigor. No rosto, vinte e três anos de reveses somavam-se aos trinta e nove de fortuna, dando-lhe uma expressão serena. A certa altura, cansado, deixou-se quedar nos sacos de farinha. O suor germinava no corpo robusto. O aroma adocicado do ambiente se alastrava pelas cercanias. Para refrescar-se, resolveu mudar de roupa. Os fregueses logo apareceram. Enquanto os atendia no balcão, um menino de rua se aproximou. Surpreendido, o confeiteiro susteve a alegria, reservando-a somente para os outros. Olhou dos pés à cabeça a criatura que havia brotado não se sabia de onde. Encontrava-se descalço, as canelas finas, arroxeadas pelo frio, o torso mirrado, a pele acobreada, a blusa encardida, de gola esfarrapada, os malares encovados. Não adivinhou nele nenhuma história: toda penúria parecia tê-lo deteriorado aos poucos. Sensibilizado, Gilberto tirou do bolso moedas e as depositou na mão ossuda e esfolada que se estendia em sua direção. Mas a boca súplice parecia querer outra coisa. Os lábios afilados moviam-se rapidamente sem articular palavras. Fincado ali, o confeiteiro não o decifrava. Compreendia, sim, aquela dor, porque fora pobre 

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